sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Estado de Graça


Amolece as pedras com tuas ondas,
Quebra todas as defesas e resistências.
Cultiva confianças, certezas,
Que eu me abro em flor agradecido,
Tudo em mim um jardim florido.

Toma a minha vida e cuida dela,
Apara as arestas, as indelicadezas,
Antigas tristezas, incertezas,
Que a ti me dou por inteiro.

Como a chuva caindo no deserto
Em hora crepuscular, de repente,
Nunca fui tão líquido,
Tão brisa, tão etéreo,
Tão transparentemente belo.

Fábio Murilo, 24.12.2014

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Dorme


Dorme enquanto eu velo, cauteloso pra que não acorde.
Serei como aquela estrela luzidia, a reparar teu sono,
Sentarei em tua cama e ficarei como a rua calma lá fora,
Vendo a madrugada avançando em horas de abandono
E a manhã chegando, embrionária, em dores de aurora.

Dorme e deixe que o silêncio te embale nos braços,
Que desfaça em vento tuas preocupações diárias.
Na escuridão a te levar como um barco
Nas águas calmas do sono ao mundo onírico.
Teu sonho é sem susto, como no mundo físico.

Deita nesse travesseiro de nuvens, adormeces tão fácil...
Doce é teu cansaço, dormes o sono dos justos.
  
Fábio Murilo, 19.12.2014

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Sentimentalidades


Hoje lembrei de você
Ao beber um achocolatado.
A recordação tem dessas coisas,
Dessas ludicidades.
E qualquer coisa sem motivo
Vira motivo de saudade.
Qualquer coisa banal,
Um episódio memorável.

Saudade então é um curativo,
Na epiderme da alma,
Acalma, afaga, alisa.
Paliativo, não cura,
Mas, dá alivio, estabiliza.
É um ensaio da felicidade.
Cordão umbilical invisível,
“Stand by” da realidade. 

Fábio Murilo, 17.08.2014

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Desvelo


Em que planeta te esconde, aonde.
Em que galáxia, há mil anos luz.
Em que beco sombrio, a tremer de frio.
Em que rua deserta dessa cidade hostil.

Minha preocupação ganha asas,
É um satélite pairando sobre tua casa.
É um cão de guarda, ave de rapina.
Mais atenciosa  que tua sombra,
Não te abandona na escuridão.

Minha preocupação é receio, cuidado.
Medo vão, zelo estremado, é ânsia.
Aponta a distância telescópios exagerados,
Devoção de monge ao templo sagrado.

Fábio Murilo, 03.12.2014

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Encontro


Chega de maneira inesperada,
Como trovoada em dia ensolarado,
Como se nunca houvesse chegado.

Atendendo ao meu chamado,
Como recado enviado por telepatia,
Lembra assim de mim, do nada.

Como se o universo conspirasse
E nesse lapso de tempo
Soprasse em teu ouvido.

Chega com tua rizada inconfundível,
Já não sou apenas eu,
Agora estás comigo.

Fábio Murilo, 28.11.2014

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Insegurança


Dá-me um pouco de tua tranquilidade,
Do pouso suave de teus pássaros,
Teus passos indeléveis, tão leves,
Teus pés descalços na areia branca.

Frágil é minha paz, inconsolável,
É meu desassossego, meu medo.
Medo do destino, da solidão,
Medo de mim mesmo,
Dos fantasmas da minha insegurança.

Penetra comigo na grande noite,
No vale de todos os perigos.
Certeza só de ida, não de chegada.
Chegar deve ser triste,
O fim de todos os caminhos,
O ninho, a certeza, o vazio.
Bom é a caminhada, o improviso.
A vida sem dias, nem hora marcada,
Sem calendários, nem avisos.
Um grande banquete ao ar livre,
Um passeio público, lúdico.
Deslizando distraidamente
Na superfície dos segundos,
Sem ontem, nem amanhã.
Capturar cada cheiro,
Cada cor, cada brilho,
Cada resquício de prazer,
Cada indício de bem estar...
E o que tiver de ser, será.

Fábio Murilo, 21.11.2014

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Pacato Cidadão


Há a resignação em ser comum,
De ser apenas mais um na multidão.
De não oferecer riscos, só risos fáceis.
De ser um cão adestrado, obediente,
Como toda gente, indiferente.

Há de se polir bem a armadura,
Escovar os dentes, sorrir sempre,
Riso de dançarina de auditório.
Mostrar-se previsível, decifrável,
Plausível, jamais contraditório.

Manter-se sempre alerta,
Pra não deixar a porta aberta,
O quadro torto, o mato alto,
Chegar atrasado, espirrar...

Reto como um poste,
Discreto como um poço.

Fábio Murilo, 14.11.2014

Poema em Linha Reta - Fernando Pessoa/Jô Soares

Society - Eddie Vedder

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Os Confrontos


Ridículo é morrer, fora isso, quase tudo é licito.
Tudo deve ser dito, teu grito a despencar do edifício,
A espantar o tédio e causar alarde às 6 da tarde.

Viver é a nossa sina, nosso destino, desatino.
Sofrer é uma possibilidade, doer após o exercício.
Sinal que surtiu efeito, aconteceu, foi concluído.

Ruim é o impasse, é não ter acontecido.
Por medo de sofrer, ter recuado, não ter arriscado.
Ficar só no que teria sido se tivesse tentado.
Receio das feridas se tivesse errado. Frustrado
Por não ter sido pleno, nessa vida mais ou menos.

Fábio Murilo, 07.11.2014

A Chuva Cai no Recife - Mauro Mota

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Do Caos Primordial


Fastio imenso, falta de motivação,
Outono da existência, até quando?
Ausência de plano, desesperação.
Pássaro engaiolado olhando a amplidão.
Leito vazio de rio, chuva que não vem,
Coisa autônoma que não se doma,
Que não se lança mão, alazão arredio.
 
O processo criativo é lenitivo, é drama,
É uma luta armada com o invisível.
É vício, parto difícil, oficio vão.
Em noite de insônia, lutar com o sono
É a melhor maneira de não dormir.
Adular a inspiração, também, é enfado,
Cão a perseguir o próprio rabo.
 
Fábio Murilo, 31.11.2014
 

No Intervalo do Sono - Dirceu Rabelo

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Apenas um Carinho

 
A palavra vai, se anima e se retrai,
Ensaia voos ousados como ave nova,
Ondas a beijar a areia e voltar pro mar.
Há o anseio e o receio de não magoar,
De não soprar forte e devastar o jardim.
Há todo um cuidado de quem
Manuseia uma cerâmica milenar,
De não pisotear com patas de cavalo.
Aproximação de nave na atmosfera,
Contato de dedos em pétalas de rosas.
Mel nas palavras dengosas a se derramar,
Satisfação de quem possui uma jóia rara,
Extremado modo de se preocupar.
 
Fábio Murilo, 22.10.2014


Aniversário - Fernando Pessoa/Jô Soares

O Valioso Tempo dos Maduros - Mário de Andrade

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Cotidiana Mente


O cotidiano, a rotina assusta, ofusca.
Mandam recados implícitos,
Lembrando da urgência de viver.
A palavra abafada, não dita por prudência,
O ato inibido por recato, intimidado,
Nosso corpo agredido em sua essência.
Mutilado, sufocado o grito,
Insatisfações tantas, restrições,
Avisos, etiquetas, convenções, intervenções,
Sinais vermelhos, anseios abortados, apelos,
Repetidos conselhos, chavões, advertências.
Regras e regras criadas pra nos convencer
Que o crime de viver não compensa.

Fábio Murilo, 15.10.2014

Instantes - Jorge Luis Borges

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Pois é...


Você é tudo que possuo, minha última tentativa, meu elo perdido.
Você é tudo que intuo e aposto todas as fichas, um achado,
Você é a luz no fim do túnel, um mundo encantado.
Horizonte distante, cenário deslumbrante ao olhar embevecido.
Como o sertanejo ao ver o solo rachado anseia pela tempestade,
Como quem conta os segundos de angustias na obscuridade
Desejoso do sol da manhã vindoura, redentora, da claridade.

Vejo-me triste, soturno, pesaroso, desanimado,
Nesse vale perdido, nessa terra de ninguém, nesse chão árido.
É que a razão pesa, as nuvens são de chumbo e o mundo vai desabar.
Falta-me o ar, a angústia me oprime, me aperta o peito feito torno,
Em torno, nada há, só desesperança, o mundo é cruel, é fel,
É um pedregulho girando no cosmo, é um entulho, engulho.
Ser humano é verme, um pouco mais crescido, acrescido de orgulho.
E não vejo beleza no mundo, só um vazio, um rio de silencio,
A desaguar por dentro, a me afogar, a me envenenar pouco a pouco.
Quero falar, mas, minha voz não produz eco, retorno,
Quero vomitar esse ácido que me assassina.

Só em você encontro chão, brisa, relva boa e afável,
Tua mão afaga meus cabelos, acalma meus medos, me anima.
Sua voz é musica agradável, é sinfonia aos meus ouvidos ensurdecidos,
Teu olhar acende meus olhos a muito apagados, entristecidos,
Cegos de tédio, de ver as mesmas coisas, enfastiados.
Tua alegria é uma festa, são rojões no ar, na noite dos meus dias.
Trazes canções inéditas, serestas, serenatas, orquestrações,
Vestida de festa, razões pra acreditar, ar aos pulmões,
Um folego a mais a esse afogado, náufrago de muito tempo.
A se entregar a essa ilusão inocente para não sucumbir,
Apenas pra sorrir um pouco, um riso pálido, inconsequente,
Deixando-se levar pela corrente sem saber aonde ir.

Fábio Murilo, 29.09.2014


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Reciprocidade


Afinidade é coisa elaborada
Como arranjos de flores.
É um primeiro instante,
Com a estranha sensação
De já ter ocorrido antes.

Afinidade não tem explicação
É uma em um milhão,
Um prêmio, um achado.

A quem se descubra surpreendido
Quando se vê no outro refletido.
Tão parecido que assombra,
Mas aproximado que sombra,
Incrivelmente assemelhado.

 Fábio Murilo, 13.09.2014

Velho Tema - Vicente de Carvalho/Paulo Autran

A Mulher que Passa - Vinicius de Moraes

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A Janela


A pedra olhada mais detidamente, é vária,
Servindo de abrigo ao tímido inseto,
Refletindo a claridade, criando limo.
E aqueles transeuntes apressados,
São depósitos de sonhos, itinerantes,
São máquinas calculadoras ambulantes.
A vida tem compartimentos, instantes:
O instante do facho de luz que penetra
Pelos vidros da janela cortando a escuridão,
Trazendo a manhã pelas mãos;
Da formiga que sobe em meu braço,
Em meio à selva de pelos, obstáculos;
Da existência toda resumida num só bolo,
Não saboreada nos detalhes, nos contornos,
Pelos cantos, feito um prato de papa;
Das luas que se desfazem em fases;
Das estrelas que brilham mais,
Quando se apagam as luzes artificiais;
Do óbvio tão imperceptível na cidade,
Invisível a quem vive apresado,
Obcecado por necessárias futilidades.

Fábio Murilo, 17.09.2014

Meus Oito Anos - Cassimiro de Abreu/Paulo Autran

Cruzou por Mim... Fernando Pessoa/Jô Soares

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O Duende Encardido


Os olhos ameaçadores
Como os de um felino no escuro,
A boca que blasfema palavras obscenas,
As mãos que afanam teu ouro
 E profanam tua tranquilidade,
O corpo acintosamente sujo...

Como que liquefeito
 Na mesma substância
Repulsiva e pegajosa,
Do teu escarro.
Como que misturado
Ao que sai de ti mesmo
 E a ti mesmo provoca asco,
Constrangimento,
O nojo hipócrita
Do próprio excremento.

Fábio Murilo, 09.11.93

Inventário de Cicatrizes - Alex Polari/Juca de Oliveira

Evocação do Recife - Manuel Bandeira

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

À Evidente Beleza


A beleza externa é efêmera.
Breve como os cometas,
Leve e frágil como pluma,
Como bruma na manhã,
Como o afã de viver.
Sabe que tudo passa, é fugaz,
Mesmo assim é graça,
Por enquanto, alvorecer.
Flash, reflexo, espanto,
A seduzir olhares perplexos
Capturados pelo encanto.

À beleza externa, no entanto,
Que importa se um dia
Será melancolia, saudade,
Amarelada no retrato.
Sortilégio, obra do acaso,
Privilégio, supérfluo,
Irrecuperável ao perecer.
É bonita por não ser eterna,
É eterna quando se vê.

Fábio Murilo, 05.09.2014